Entrevista com Michael Levine, ex-oficial da DEA, sobre a política norte-americana de controle do tráfico de drogas. - Por Radio Nizkor
Gregorio Dionis, Diretor da Equipe Nizkor, entrevista Michael Levine, ex-oficial da Drug Enforcement Agency (DEA) e adjunto desta agência na Argentina e no Uruguai entre 1979 e 1982. Esta entrevista foi realizada nos marcos do “Seminário sobre estados de exceção e estratégias para a paz e defesa dos direitos civis”, organizado pela Equipa Nizkor e realizado em Bruxelas de 27 a 29 de março de 2003.
Trata-se de um testemunho único de alguém que conheceu profundamente a relação entre os serviços de inteligência e os mercados de produção e distribuição de droga, tanto no Sudeste Asiático como na América Latina.
Gregorio Dionis: aparentemente não deveria entrar o tema do narcotráfico nem do crime organizado, mas ocorre exatamente o contrário. Na realidade estamos falando de estratégias para a paz e a defesa dos direitos civis na Colômbia, além de outros países. E nesse lugar específico do discurso para a paz é necessário tocar a fundo o tema do narcotráfico, como também o é, se quisermos falar da paz no sudeste asiático ou da paz no Afeganistão.
Não são muitas as pessoas no mundo capazes de fazer uma interpretação global da política norte-americana com relação ao narcotráfico. E não o são, entre outras coisas, porque se trata de um tema obscuro que está situado no que se denomina de política negra dos países, de muitos países e de muitos ministérios de relações exteriores. Michael Levine é um alto oficial da DEA que conheci durante um colóquio internacional sobre as drogas realizado em Paris, em dezembro de 1992, pelo então existente Observatório Geopolítico de Drogas, e que foi organizado conjuntamente com o que então era a Comunidade Econômica Européia, cuja conseqüência mais direta foi a criação posteriormente de um Comissário de Drogas ou de Narcotráfico no contexto da política européia.
Naquela oportunidade tive a sorte de poder falar durante várias horas com Michael Levine e sua companheira Laura Cavanot de Levine. Ambos criaram um discurso que permite entender muitas das coisas dessa política obscura. Michael Levine produziu vários livros que são referência obrigatória no caso do narcotráfico na América Latina. É também uma referência obrigatória para entender o que aconteceu na Bolívia, na Argentina e posteriormente no México e outros países onde o narcotráfico se colocou entre as fontes de financiamento das políticas governamentais.
É muito pouco conhecido, mas a guerra na América Central, tal qual se conheceu durante os anos 80, a partir do lado que se denominou de Guerra Suja ou Guerra Encoberta ou Operações Encobertas, de diferentes nomes, dependendo da fonte de fala, foram financiadas pelo narcotráfico, a partir da cocaína da Bolívia e do mercado nascente da heroína que se trasladou àqueles lares exatamente para poder financiar uma longa guerra que desestabilizou todo o continente e que ainda hoje em dia, trinta anos depois de haver começado este período perigoso da política anti-subversiva na América Latina continua dando o que falar.
A Colômbia é um modelo de financiamento da guerra e das operações militares através do narcotráfico. Por mais que o governo colombiano negue e queira mostrar ao resto do mundo que não é assim, na realidade todos sabemos que o financiamento da guerra por parte do Estado colombiano é realizado desde há muitos anos com o tráfico de drogas.
Michael Levine nos explicará em uma longa entrevista alguns aspectos desta política, mas basicamente é importante entender que se trata de um testemunho direto de uma pessoa envolvida na luta contra o narcotráfico em uma agência policial como é a DEA norte-americana; portanto é um testemunho único e insubstituível para entender o que dissemos no início: A Política Norte-Americana para as Drogas ou para o narcotráfico, que é o título da palestra que lhe pedimos para o seminário que organizamos em Bruxelas como forma de ajudar a compreender o quadro e o contexto em que se produz o conflito colombiano e quais são as alternativas reais e viáveis para encontrar uma paz com justiça social e com o reconhecimento dos delitos que ali são cometidos:
SUA INICIAÇÃO NA DEA COMO AGENTE SECRETO
Gregorio Dionis: em primeiro lugar agradecer que tenha aceitado participar desta questão...
Michael Levine: bem, estou aqui para isso.
Gregorio Dionis: O que ia te pedir é que fizesses uma pequena apresentação pessoal. Quem és? O que tens feito? Por que estás aqui?
Michael Levine: Em primeiro lugar sou um veterano da DEA com 25 anos de serviços. E a partir de minha aposentadoria da DEA no ano de 1990 comecei uma carreira de consultor-testemunha-especialista em assuntos relacionados com operativos secretos, direção de informantes, inteligência humana, uso de força mortífera da polícia e qualquer coisa relacionada ao tráfico de drogas internacional e aqui nos EUA. Nisto eu trabalhei muito intensamente durante os últimos doze anos, trabalhando sobretudo com advogados de defesa, mas de vez em quando há escritórios de procuradorias gerais de diferentes estados aqui nos Estados Unidos que também me empregam com expert em todos esses assuntos. O que mais quer saber? Há livros!
Gregorio Dionis: Essa é uma das questões. Poderias nos contar um pouco sobre os livros que tens escrito? Um breve resumo do que contas em cada um desses livros?
Michael Levine: Bem, o primeiro livro no qual eu tive participação foi com o título “Undercover”, ou seja, encoberto. Esse foi escrito por Donald Gardeth, jornalista do New York Times durante minha carreira. Quando ele estava escrevendo o livro eu ainda estava trabalhando como agente secreto pela DEA. Este livro traz um enfoque da minha carreira desde muito cedo, de minha juventude; de todas as coisas que tinham a ver com a educação que eu tinha nas ruas de Nova Iorque, que me preparou perfeitamente bem para a carreira de trabalhar em segredo, ou seja, eu tenho diploma da rua, diploma dos embates duros e não há melhor preparação para o trabalho secreto.
Eu comecei a trabalhar encoberto e me dei conta muito cedo em minha carreira de que toda a guerra às drogas, não há outra maneira de dizer, era uma fraude. O que acontece é que eu era crente e esse livro capta todos esses anos. Eu era crente em toda a filosofia e toda a política de guerra às drogas, ou seja, que o inimigo número um é o vendedor, o fornecedor de drogas; um estrangeiro, um tipo com pele como a minha, escura, perigoso, na América do Sul, na Tailândia. E temos que fazer qualquer coisa para destroçar este inimigo para proteger nossos filhos. E ao mesmo tempo eu tinha um irmão que se meteu com heroína aos 15 anos de idade e eu era crente número um.
O meu primeiro caso no qual eu comecei a aprender a verdade e não podia evitá-lo, foi quando eu me metia com traficantes chineses na Tailândia, durante a Guerra do Vietnã. E este também era um caso encoberto, Undercover. E este foi um caso mais ou menos famoso, dos traficantes que foram introduzindo heroína nos Estados Unidos ocultada nos cadáveres dos nossos soldados que foram mortos no Vietnã. Ao final das contas eu fui à Tailândia e me meti com esses traficantes e eles se encantaram comigo. É que eu caibo perfeitamente no enquadramento de um mafioso número um e os chineses tinham total confiança em mim. E me convidaram a ir aonde eles descreveram como a “feitoria”, onde em 1971, durante a Guerra do Vietnã, estavam produzindo toneladas de heroína. E depois de dois ou três meses trabalhando encoberto, sob uma situação, viajando dentro do Camboja até a Tailândia, a CIA então se mete. Isso a primeira vez em minha vida, se mete no caso a CIA e me dizem: “Levine, pare por aí, não queremos que vá mais além”. O porquê, eu me dei conta depois, foi que os traficantes maiores, nessa região do mundo, no tráfico de heroína eram aliados da CIA na Guerra do Vietnã. Eu não podia acreditar nisso; eu era um bom soldado, não percebia porque antes disso eu estava no Exército norte-americano, acreditava no sistema, cumpria ordens. E quando a CIA me disse: “você não sabe de todos os interesses que funcionam agora; você não conhece o desenho grande. Você tem que confiar em nossa palavra, sendo um bom soldado: pare por aí”. E o fiz. E depois percebi que a CIA então estava protegendo os traficantes que estavam introduzindo heroína nos Estados Unidos dentro dos cadáveres dos nossos jovens. Vocês não podem imaginar como isto me causou impacto. Eu não queria acreditar nisso, não podia acreditar e continuar trabalhando porque então eu tinha meu irmão que estava sofrendo por causa da heroína e depois, como te disse, se lançou às drogas aos 15 anos de idade e aos 37 anos de idade meteu em si uma bala escrevendo uma carta: “Perdoe minha família, meus amigos, eu não podia mais agüentar a droga”.
Imagine como eu poderia continuar meu trabalho se havia absolvido a verdade; não podia absolver isso, não podia conceber isso. Isso era uma opinião impensável. E eu continuei trabalhando; trabalhando encoberto, atuando em caso após caso. E depois vamos discutir o tema de informantes porque esse é um tema que não estou tão seguro de que vocês estejam a par exatamente sobre o que significa o uso de informantes no mundo da droga. Vocês têm que ter em mente que 99% dos casos de tráfico de drogas começam, decolam através de informações, do trabalho de informantes. E voltando àqueles anos, eu era muito bom no trato com informantes. Eu sabia bem como dirigir os informantes; eu sabia como pensavam os informantes porque eram criminosos e eu fui criado na rua; a metade dos meus amigos era criminosa. Eu vivi uma vida bastante experimentada. Estou procurando outra maneira de descrever isso. Eu atuei em milhares e milhares de casos: heroína, cocaína, traficante. E outra coisa é que eu fui criado em um bairro latino de Nova Iorque e aprendi, como nós dizemos na rua, Spanglish (mescla de espanhol e inglês); e eu podia conversar sem lições, porque minha primeira namorada era porto-riquenha, eu tinha 13 anos de idade e todos os meus amiguinhos eram também boricuas (porto-riquenho). Nessa época não havia muito oficiais, não havia muitos agentes da DEA ou de outras agências que podiam se defender em espanhol e começar a ingressar todos.
O tráfico de cocaína foi aumentando tremendamente e a maioria dos traficantes era de fala espanhola. E me colocaram na rua trabalhando, fazendo-me passar por traficante; e comecei a atuar em caso após caso de cocaína, às vezes duzentos quilos, cem quilos. E naqueles anos esses casos foram tremendos. E me passaram para trabalhar na Argentina onde eu desempenhava o cargo de adjunto da DEA. Mas a maior parte de meu trabalho na Argentina foi fazer me passar por traficante, meio siciliano, meio porto-riquenho, conhecendo traficantes em todos os países. E lá eu conheci gente ligada a Roberto Suárez.
E sobre essa história eu recomendo que obtenham uma cópia não impressa, que se pode obter através da Internet facilmente. Saiu também na América do Sul sob o título de “A Grande Mentira Branca”. E a história de Roberto Suárez é que ele também se encantou comigo, tinha muita confiante em mim, acreditava em mim. E a minha infiltração junto ao pessoal de Roberto Suárez veio através de um informante de confiança de Suárez, como em todos os casos. E ele me apresentou como gente de confiança; no final das contas chegamos a ter naquela época o maior caso da história do tráfico de drogas.
QUEM ERA ROBERTO SUÁREZ, SUA RELAÇÃO COM OS DENOMINADOS “NOIVOS DA MORTE” DO EX-SS NAZISTA KLAUS BARBIE E A POLÍTICA DE SEGURANÇA NACIONAL EM INÍCIOS DOS ANOS 80 EM PAÍSES COMO BOLÍVIA, PARAGUAI, ETC... E DE COMO MUITOS DOS MERCENÁRIOS DE SUÁREZ ERAM INFORMANTES DA CIA.
Gregorio Dionis: Por que não explicas um pouco quem era Roberto Suárez? Sua relação com aqueles grupos dos “Noivos da Morte” e também com a política do que se chamava de “Segurança Nacional” naquela época na Bolívia, Paraguai, para os que nos ouvem possam ter uma opinião mas clara do que aconteceu.
Michael Levine: Roberto Suárez era, segundo o contador do cartel de Medelim, que foi testemunho perante nosso congresso, o maior traficante da história, o mais poderoso, maior e mais poderoso do que qualquer colombiano. Ele, naquela época, controlava 99% do produto que saiu da Bolívia, a pasta básica. Daí a pasta básica foi para a Colômbia para ser transformada em cocaína. Sem a pasta básica não haveria mercado de cocaína. Roberto Suárez foi o controlador de toda a cocaína neste planeta quando eu o conheci. E ao mesmo tempo ele tinha seus soldados de segurança sob controle de Klaus Barbie, o nazi fugitivo. E a maioria de seus seguranças era de ex-oficiais SS do exército nazista. Ele tinha também um grupo que se chamava então de “los fianzes de la muerte”. E esse grupo também incluía agentes da França, mercenários de todos os países do mundo que vieram para a Colômbia trabalhar como assassinos, não há outra maneira de descrevê-los. E gente bem experiente em métodos de tortura; esse foi seu exército.